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O mecanismo do artigo 99.º do CPTA: O novo procedimento “James Bond Massa” do Contencioso Administrativo?


Na última revisão de 2015 do CPTA, foi introduzida uma nova forma de processo especial urgente, de acordo com a epígrafe do artigo 99.º (contencioso dos procedimentos de massa), no qual pretende certificar que são intentados dentro do mesmo prazo, mais curto, de um mês, no mesmo tribunal, o da sede da entidade demandada, e submetidos a uma tramitação de urgência, os múltiplos processos a que podem dar origem procedimentos relativos a concursos de pessoal, realização de provas e recrutamento que, por envolverem mais de 50 pessoas, o CPTA qualifica como procedimentos de massa.[1]     Numa aula teórica, o professor Vasco Pereira da Silva indicou, que havia uma regra anterior, do ano de 2004, no qual quando o juiz verificasse que existia no seu tribunal processos análogos respeitantes à mesma atuação administrativa, com os mesmos pedidos e causas de pedir, por uma questão de celeridade processual, o processo intentado em primeiro lugar continuava até ao fim e os outros ficariam suspensos. Posteriormente, quando saísse a decisão final em relação ao primeiro processo, os sujeitos dos outros processos poderiam escolher aderir à decisão ou se entendessem que havia pedidos e causas de pedir diferentes continuariam com o seu processo. Era uma regra baseada numa experiência proveniente do direito comparado, que se aplicava apenas a pedidos com mais de dez processos, com pedidos e causas de pedir muito semelhantes.
            O 99/1.º do CPTA indica-nos os 3 domínios já elencados, respeitantes à prática ou omissão de atos administrativos no âmbito de procedimentos com mais de 50 participantes. De acordo com o 99/2.º o prazo de propositura de tais ações é de um mês e o tribunal competente para as mesmas é o da sede da entidade demandada (abandonando-se, assim, a regra do domícilio do autor, que originava uma grande dispersão territorial)[2]. O 99/3.º obriga a aprovação de um modelo a que devem respeitar os articulados (nomeadamente estabelecido por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça, de acordo com o nº3 in fine). O nº4 estabelece a apensação obrigatória de ações à que tiver sido proposta primeiramente, quando estiverem preenchidos os pressupostos de admissibilidade previstos para a coligação e a cumulação de pedidos.[3] De acordo com o 36.º/1/b) do CPTA, possui caráter urgente o procedimento de massa e por isso, a decisão passa a ser proferida num prazo curto (cfr. o nº5 do 99.ºCPTA), 20 dias para a contestação, 30 dias para a decisão do juiz ou do relator ou para o despacho deste a submeter o processo a julgamento, e 10 dias para os restantes casos. Diferenças do 99.º para o 48.º CPTA? Atualmente, estão em vigor dois tipos de procedimentos de massa, com diferente tramitação. O do artigo 99.º, que se aplica apenas aos concursos de pessoal, procedimentos de realização de provas e procedimentos de recrutamento, e outro, previsto no artigo 48.º (Seleção de processos com andamento prioritário), que se aplica às restantes situações[4].

A relação com o artigo 161.º do CPTA
           
O artigo 161.º (Extensão dos efeitos da sentença), possibilita a extensão dos efeitos de casos julgados em litígios perfeitamente idênticos em sede de funcionalismo público e concursos, com respeito pelos direitos de eventuais contra-interessados e desde que não exista caso julgado em contrário.[5] A pergunta  que interessa colocar, é a seguinte: quem  não recorre ao procedimento do artigo 99.º (como verificado supra, de seu curto prazo), pode beneficiar da extensão dos efeitos da sentença a que se refere o 161.º ? A resposta deve ser negativa, não pode. Na medida do artigo 161.º/2/a) o legislador fala de “existindo situações de processos em massa”, todavia é uma remissão para ao artigo 48.º CPTA (restantes casos que não estão abrangidos pelo 99.º). Em segundo lugar, por um argumento de teleologia da norma, citando Carla Amado Gomes: “se a intenção do artigo 99.º é permitir a estabilização da relação jurídica que está na base do procedimento gerador do litígio entre a entidade que o desencadeou e alguns dos participantes, e por essa razão se fechou o prazo de sindicância em um mês, não faria sentido que meses mais tarde algumas pessoas viessem fazer-se valor dos efeitos de um caso julgado favorável, reabrindo o processo”[6]. A meu ver faz todo o sentido, porque a matriz do artigo 99.º é mesmo o estabelecimento de um prazo curto, para processos urgentes, e se realmente existisse esta conexão direta com o 161.º alguns cidadãos aproveitariam-se da situação, por isso apenas remete para o artigo 48.º e não o 161.º (o primeiro, é precisamente um mecanismo de “speedy gonzalez”, uma aceleração que atribui urgência a apenas um processo, já o segundo remete para um processo de estabilização rápida de um contencioso de massa, que reconhece todos os processos como urgentes e apensa-os).[7]

A relação com a figura da intervenção espontânea, nos artigos 312.º e seguintes do CPC
           
Outro mecanismo próximo que pode cruzar-se com a solução prevista no artigo 99.º é o instituto da coligação superveniente[8]. Tendo em conta a supletividade do disposto na lei processual civil em relação ao processo administrativo (1.º CPTA in fine), e os artigos 312.º e seguintes do CPC, a intervenção  principal espontânea que se realize até ao despacho saneador é susceptível de ser apoiada por um articulado próprio, veja-se o 312º do CPC (“O interveniente principal faz valer um direito próprio, paralelo ao do autor ou do réu, apresentando o seu próprio articulado ou aderindo aos apresentados pela parte com quem se associa”). Mediante a sua intervenção principal espontânea pode apresentar o seu próprio articulado, todavia se for posterior, citando Carla Amado Gomes: (mas sempre anterior à audiência de julgamento), o interveniente deverá cingir-se à adesão aos fundamentos do autor[9]. Em termos práticos a autora diz-nos que, esta intervenção espontânea poderá prevenir a apensação de processos, se por exemplo os autores que tomassem a decisão de apresentar ações autónomas, se revejam nos fundamentos invocados pelo autor na primeira ação.

O prazo de apresentação da ação (99/2.º CPTA)
            
No elemento literal do artigo 99.º/2 refere apenas que o prazo da propositura de ação é de apenas um mês. No entanto, será que esse mês se conta a partir do dia da publicação do ato plural, ou conta já a partir da entrada do primeiro processo? De acordo com Carla Amado Gomes, deve contar-se o mês após a publicação do acto plural, final ou parcial, que desencadeará reações múltiplas da parte dos participantes (ou candidatos a) que se sintam lesados.[10] Por conseguinte imagine-se a seguinte situação, o autor A propõe uma ação, e participa no procedimento em massa, mas não deseja a apensação de processos posteriormente. Para não perder o efeito urgente do procedimento do 99.º, se este não der aso à parte de “batalhar” processualmente pela via que considera mais apropriada à tutela do seu direito, então este artigo 99.º arriscaria-se a violar o princípio do direito à tutela jurisdicional efectiva. Defende Carla Amado Gomes, que apesar de dever respeitar o prazo de um mês, o autor da ação subsequente poderá opor-se à apensação obrigatória quando dela for notificado, invocando e caracterizando a inconveniência a que o artigo 28.º/1, in fine, do CPTA alude.[11] No acórdão do TCA SUL de 13-08-2018, uma professora de educação física a nível de um concurso de recrutamento, pediu a anulação na parte em que classificou o autor na 3ª prioridade daqueles grupos de recrutamento do 1ºciclo do Ensino Básico, e bem assim a condenação do réu a integrar o autor na 2ª prioridade, praticando os atos necessários à reconstituição da situação conforme a legalidade.[12] Uma das questões a analisar neste acórdão a nível do prazo, é que o tribunal vem dizer: A autora não pode utilizar os meios de impugnação graciosa, expressamente previstos, que já havia caducado o direito de ação do recorrente, todavia esta interpretação do artigo 99º/2 do CPTA viola claramente o artigo 20.º da CRP (acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva). O 99.º/2 fala-nos no prazo de 1 mês, mas o artigo 99º do CPTA não nos indica qualquer informação quanto outros detalhes relativos à contagem desse prazo, seja ao termo inicial, causas de suspensão ou interrupção. Vejamos, se o CPTA nada considera entre as normas que regulam a forma de processo, relativamente ao contencioso de procedimentos de massa previsto no seu artigo 99º, tanto à contagem do prazo de de um mês, como ao respetivo termo inicial e quanto a possíveis causas de suspensão ou interrupção, é nos artigos 50º a 94º do CPTA que deverá encontrar-se a resposta, por força da remissão contida no artigo 97º nº 1 alínea b) do CPTA, que nos remete assim para o título II. Assim sendo, o artigo 59º nº 4 do CPTA de acordo com o qual “…a utilização de meios de impugnação administrativa suspende o prazo de impugnação contenciosa do ato administrativo, que só retoma o seu curso com a notificação da decisão proferida sobre a impugnação administrativa ou com o decurso do respetivo prazo legal, consoante o que ocorra em primeiro lugar”, tem aplicação (subsidiária) no âmbito dos processos de contencioso dos procedimentos de massa previstos no artigo 99º do CPTA.[13]

CONCLUSÃO
            
O processo de contencioso de procedimentos de massa, artigo 99º do CPTA, na versão resultante da revisão realizada pelo DL n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro, sendo um processo especial urgente, visa precisamente abranger os 3 casos elencados na lei. A Professora Carla Amado Gomes diz que não se realizar um uso desmedido dos processos urgentes, porque se tudo for urgente deixam todos os processos de ser urgentes. Não foi ao acaso que deliberei para o título do post do blog, como o procedimento “James Bond Massa”, porque ao contrário do 78.º CPTA (“massinhas”), o que se pretende com o 99 é mais uma “massificação”, pois note-se que o legislador colocou o mínimo de 50 participantes, para além de ter um domínio restrito e procura-se uma decisão urgente. James Bond atuava em situações de extrema urgência, apenas em certos, casos tal como o contencioso de procedimentos de massa. No período pós 2015, surge assim este processo urgente de “processos massa”, sendo que há uma decisão urgente porque o que está em causa são precisamente atos administrativos de natureza coletiva, que têm uma multiplicidade sujeitos. Nesta medida, existem os mesmos problemas porque têm o mesmo pedido e a causa de pedir, sendo que se verifica este processo em muitos de casos de colocação de professores, concursos, recrutamentos, como mencionado no acórdão do TCA SUL anteriormente. Em suma, “My name is Bond, Processo de Massa Bond”…


[1] AROSO DE ALMEIDA, Mário- “Manual de Processo Administrativo” 2017 3ªEdição página 135
[2] VALLES, Edgar- “Contencioso Administrativo” 2017 página 101
[3] VALLES, Edgar- “Contencioso Administrativo” 2017 página 101
[4] VALLES, Edgar- “Contencioso Administrativo” 2017 página 101
[5] AMADO GOMES, Carla- “Temas e Problemas da Justiça Administrativa” 2018 página 74
[6] AMADO GOMES, Carla- “Temas e Problemas da Justiça Administrativa” 2018 página 75 e 76
[7] AMADO GOMES, Carla- “Processos…, página 641
[8] AMADO GOMES, Carla- “Temas e Problemas da Justiça Administrativa” 2018 página 79
[9] AMADO GOMES, Carla- “Temas e Problemas da Justiça Administrativa” 2018 página 79
[10] AMADO GOMES, Carla- “Temas e Problemas da Justiça Administrativa” 2018 página 80
[11] AMADO GOMES, Carla- “Temas e Problemas da Justiça Administrativa” 2018 página 81
 [13] http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/0b96c27df1717b3c802583300032cedd?OpenDocument


Bernardo Saramago nº 28009, Subturma 11

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