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O âmbito da intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias


O âmbito da intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias

A intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias está regulada nos arts. 109º a 111º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA). Segundo o Prof. Mário Aroso de Almeida, pode dizer-se que os processos de intimação são processos urgentes que se caracterizam por se dirigirem à emissão de uma imposição, ou seja, uma pronúncia de condenação com carácter de urgência que é proferida no âmbito de um processo de cognição sumária.[1]
Em primeiro lugar, para se entender este mecanismo é preciso enquadrá-lo com o art. 20º/5 da Constituição, que surgiu na sequência de um conjunto de tentativas falhadas de instituir no Ordenamento Jurídico português a ação de amparo. Com efeito, tanto na revisão constitucional de 1989 como na de 1997, houve projetos com essa finalidade. Segundo este preceito constitucional para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.
Feita esta menção, cabe agora observar como este preceito foi concretizado na legislação ordinária. Começando pelo art. 109º/1 do CPTA, ficamos a saber que a intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias pode ser requerida quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento provisório de uma providência cautelar, segundo o disposto no artigo 131.º
Confrontando o preceito constitucional com o disposto no CPTA, parece que o legislador ordinário foi além do disposto no texto constitucional, pois, alargou o uso deste meio a todos os direitos, liberdades e garantias, isto é, aos pessoais e não pessoais, enquanto a CRP limita este meio somente aos pessoais. Será que esta deve ser a interpretação dada a este artigo?
Para a Prof. Carla Amado Gomes, a resposta é positiva, essencialmente porque não existe problema em expandir o âmbito da tutela urgente de posições jurídicas fundamentais. Só se houvesse uma restrição do âmbito é que seria problemático.[2] Opinião diferente parece ter tido o Supremo Tribunal Administrativo na primeira vez que se pronunciou sobre o assunto[3]. Com efeito, pode ler-se no acórdão que o pedido de intimação (…) tem necessariamente, de naufragar, já que, como decorre claramente da petição, as Requerentes não referenciam, minimamente, um direito, liberdade e garantia pessoal que fosse merecedor da tutela que lhe é conferida pelo meio processual previsto nos artigos 109º a 111º do CPTA, sendo que era requerida intimação judicial para protecção de direitos, liberdades e garantias, contra o Primeiro-Ministro e o Ministro do Ambiente, no sentido de estes “se absterem de praticar qualquer acto que ponha em causa os princípios constitucionais e legais do nosso ordenamento jurídico, nomeadamente, qualquer acto administrativo que possibilite as anunciadas demolições, sem a existência dos respectivos títulos executivos.
Atualmente, o STA já veio expressar uma posição diferente na matéria. No acórdão de 29 de janeiro de 2014[4], em que estava em causa o direito de acesso ao ensino superior, direito previsto no art. 74º da CRP e que se insere formalmente no capítulo dos direitos económicos, sociais e culturais, o STA considerou o seguinte: o legislador do CPTA acolheu uma formulação do citado normativo que admite a possibilidade de outros direitos que não os direitos, liberdades e garantias fundamentais ou análogas merecerem protecção célere e por meios processuais expeditos, isto é, quis adoptar um conceito que abrangesse um maior número de direitos do que os indicados no art.º 20.º/5 da CRP. Aliás, no mesmo acórdão o STA refere outros acórdãos do mesmo tribunal que tiveram decisões contraditórias entre si, o que mostra que a jurisprudência do Supremo não tem sido uniforme quanto a esta questão: por exemplo, num acórdão do Pleno 2010[5], o STA afirma que o processo de intimação previsto no art. 109º do CPTA respeita a direitos fundamentais ou a eles analogados, não servindo para tutelar direitos subjectivos com menor premência.
Concluída a análise relativa aos direitos que cabem na intimação, cabe agora analisar o outro aspeto que sobressai do art. 109º/1: a subsidiariedade deste mecanismo. De facto, a intimação para proteção de direitos liberdades e garantias só pode ser requerida quando não é possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento provisório de uma providência cautelar nos termos do art. 131º. Caberá ao juiz avaliar se essa impossibilidade ou insuficiência se verificam, no despacho liminar, a proferir no prazo máximo de 48 horas, no qual, sendo a petição admitida, será ordenada a citação da outra parte para responder no prazo de sete dias (art. 110º/1). Quando a complexidade da matéria o justifique (nº 2) ou em situações de especial urgência (nº 3) o processo poderá ser ainda mais expedito. Caso o juiz verifique que não se justifica o decretamento de uma intimação, porque naquele caso basta a adoção de uma providência cautelar, fixará, no despacho liminar, um prazo para o autor substituir a petição, para o efeito de requerer a adoção de providência cautelar, seguindo-se, se a petição for substituída, os termos do processo cautelar (artigo 110º-A/1). O processo será decidido pelo juiz no prazo necessário para assegurar o efeito útil da decisão, o qual não pode ser superior a cinco dias após a realização das diligências necessárias à tomada da decisão (art. 111º/1). Na decisão será determinado o comportamento concreto a adotar e, sendo caso disso, o prazo para cumprimento e o responsável pelo mesmo (nº 2).
Nesta fase cabe então averiguar em que casos se deve decretar esta intimação e não uma providência cautelar. Num balanço sobre a forma como esta intimação tem sido usada, a Prof. Carla Amado Gomes[6] nota que apesar deste meio ter sido claramente pensado para situações em que uma decisão rápida e final se justificasse pela necessidade de evitar a perda da possibilidade de exercer o direito em tempo útil (por exemplo, no caso de uma manifestação, a concessão de uma providência cautelar esvaziaria de conteúdo a ação principal a propor) a intimação também tem sido usada tanto em situações em que a concessão de uma providência cautelar poderia gerar danos intoleráveis ao requerente caso a decisão principal não lhe fosse favorável (por exemplo, deve ser decretada uma intimação para permitir o acesso ao ensino superior e não uma providência cautelar de matrícula provisória, porque o aluno arriscaria perder anos da sua vida caso a decisão principal lhe fosse desfavorável) como para garantir a segurança jurídica nos casos de reversão da providência cautelar na sentença (exemplo de atos praticados por profissionais cuja admissão em Ordens Profissionais, a não ser decretada através de intimação, deixaria em aberto a nulidade dos mesmos).


Conclusão

Em suma, podemos concluir que quanto ao âmbito desta tutela urgente, a melhor opinião é a que considera que o regime desta intimação abrange todos os direitos, liberdades e garantias, isto é, tanto os pessoais como os não pessoais. Com efeito, parece ter ficado demonstrado nos casos referidos acima, que caso restringíssemos o uso deste meio só aos direitos, liberdades e garantias pessoais se iriam gerar decisões com consequências intoleráveis, baseadas num argumento puramente formal. Assim, não parece haver motivos atendíveis que impeçam uma interpretação extensiva deste regime, sendo de criticar a resistência do STA nesta matéria, patente nas suas decisões contraditórias que não ajudam a esclarecer esta questão.


Ricardo Reis, nº 25898
           


[1] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2017
[2] CARLA AMADO GOMES, Temas e Problemas da Justiça Administrativa, AAFDL Editora, 2018
[3] Acórdão do STA de 18-11-2004, processo: 0978/04
[4] Acórdão do STA de 29-01-2014, processo: 01370/13
[5] Acórdão do Pleno de 18 de Fevereiro de 2010, processo: 0884/09
[6] CARLA AMADO GOMES, idem

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