«– Em geral não se dão uns com os outros – retorquiu o
comerciante – não era possível; são tantos. Além disso, há poucos interesses
comuns. Por vezes, dentro dum grupo, começa-se a acreditar num interesse comum;
porém, em breve essa convicção é considerada um erro. Em comum não se consegue
nada contra o tribunal. Cada caso é analisado separadamente; é, na verdade, a
mais cuidadosa das justiças. Em comum não se pode, pois, conseguir seja o que
for; só isoladamente e em segredo se alcança por vezes alguma coisa. Contudo,
os outros só vêm tomar conhecimento do que se deu, depois do acto consumado.
Ninguém sabe como aconteceu. Não há, pois, solidariedade; é certo que, de vez
em quando, as pessoas ainda se encontram nas salas de espera, mas aí pouco se
fala.»
Franz Kafka, O Processo,
Círculo de Leitores, Lisboa, 1976, p. 172.
«(…) a originalidade do contencioso administrativo português
reside, precisamente nessa possibilidade de prossecução directa da tutela
objectiva da legalidade e do interesse público mediante a actuação processual
do actor público e do actor popular (como complemento da protecção
jurídico-subjectiva) (…).»
Vasco Pereira da Silva, O
Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª ed., Almedina,
Coimbra, 2009, p. 272.
Este texto tem por objectivo discutir alguns
aspectos da figura da acção popular, no quadro da legitimidade processual
activa, tal como se encontra configurada no contencioso administrativo
português.
Num primeiro momento, faremos um enquadramento legal
e conceptual da figura da acção popular. Seguidamente, daremos conta de algumas
questões doutrinárias suscitadas a propósito dos contornos desta acção
administrativa, onde teremos igualmente ocasião de aflorar o conceito de
interesse difuso, na sua intercepção com os conceitos de direito subjectivo e
de interesse legalmente protegido. Finalmente, partindo da análise de algumas perspectivas
teóricas conhecidas da doutrina portuguesa, procuraremos tomar uma posição.
1. O direito de acção popular
encontra-se consagrado na Constituição da República Portuguesa, no seu artigo
52º, nº3 (na versão original da Constituição, a acção popular estava prevista
no art. 49º, nº 2): «É reconhecido o direito de acção popular, nos casos e nos
termos previstos na lei». Em 1976, o legislador constituinte remetia para a lei
ordinária os «casos e termos» em que seria exercido este direito, sendo que foram
precisas quase duas décadas para que surgisse entre nós um diploma legal
dedicado à concretização do direito de acção popular; sob o título de «Direito
de participação procedimental e de acção popular», surgiu pela Lei n.º 83/95,
de 31 de Agosto. Não obstante esta inconstitucionalidade por omissão verificada
até 1995, uma vez que a acção popular gozava já então de dignidade
constitucional – um verdadeiro direito fundamental – os cidadãos não estavam impedidos
de recorrer a esta figura processual, devendo para tal invocar directamente a
Constituição.
A acção popular encontra-se hoje expressamente
prevista em todos os meios processuais tipificados no Código de Processo nos Tribunais
Administrativos. Para além da sua consagração na norma geral do art. 9º, nº2,
enquadrada sistematicamente nos pressupostos processuais relativos às partes,
aplicáveis a todas as sub-acções administrativas, está prevista especificamente:
-nas acções de
impugnação de actos administrativos: art. 55, nº1, al. f);
-nas acções de
condenação à prática do acto devido: art. 68º, nº1, al. f);
-nas acções de
impugnação de normas e condenação à emissão de normas: art. 73º, nº1
-nas acções
relativas à validade e execução de contratos: art. 77º-A, nº1, al. h)
-nas acções
administrativas urgentes, em virtude da remissão feita no art. 97º, 1º para a
acção administrativa
A Lei nº 83/95, de 31 de Agosto,
sofreu algumas alterações em resultado da revisão de 2015. Até então,
manteve-se inalterada no seu conteúdo. No nº 1 do art. 12º passou a prever-se
que «A acção popular administrativa pode revestir qualquer das formas de
processo previstas no Código de Processo nos Tribunais Administrativos». De
referir apenas que também o art. 16º, relativo à actuação do Ministério Público,
foi sujeito a alterações, assim como o nº 19º (Decisões transitadas em
julgado).
É sabido que a revisão do
contencioso administrativo, de 2015, veio por um ponto final (ou pelo menos um
ponto e vírgula…) no dualismo das acções (acção comum e acção especial), pelo
que já não estamos em presença de diferentes acções, mas de uma única acção – a
acção administrativa – e de vários meios processuais aos quais correspondem
diferentes efeitos possíveis das sentenças. Também a acção popular não é uma
forma autónoma de processo. De resto, a Lei 83/95, de 31 de Agosto vem apenas estabelecer
regras especiais de tramitação processual, nos seus arts. 13º e ss.
2. É comum, na doutrina,
considerar-se a legitimidade para a defesa de interesses difusos uma ampliação
da legitimidade activa do particular, sujeito de relações jurídicas administrativas e fiscais (conceito
nuclear do direito do nosso contencioso administrativo e fiscal, ínsito no art.
212º, nº3, da Constituição da República Portuguesa), titular de uma concreta relação
material controvertida.
Veja-se, a título de exemplo, que
é esta ideia de ampliação que se encontra subjacente nestes excertos de dois
eminentes administrativistas portugueses:
«[a acção popular] não constitui
um sucedâneo, mas antes algo que acresce à tutela jurídica subjectiva, a qual é
a razão de ser e a função principal dos meios processuais (…); representa uma forma
de alargamento da legitimidade, que acresce à protecção jurídica subjectiva,
desenvolvendo a vertente objectiva do contencioso administrativo.» (Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, p. 205)
«Como resulta do artigo 9º, nº 2,
encontramo-nos, aqui, perante um fenómeno de extensão da legitimidade (…) a
quem não alegue ser parte numa relação material que se proponha submeter à
apreciação do tribunal.» (Mário Aroso de
Almeida, Manual de Processo
Administrativo, Almedina, Coimbra, 2007, p. 219)
Mas será a acção popular tão
distinta da acção levada a cabo pelo particular que vê os seus direitos ou interesses
lesados por normas, actos ou omissões da administração?
Procurando traçar fronteiras
nítidas entre estas realidades, VASCO
PEREIRA DA SILVA considera que «(…) uma coisa é a acção para defesa de interesses próprios, de indivíduos ou de
associações, outra coisa é a acção
popular, destinada em primeira linha à defesa da legalidade e do interesse
público (…). (Vasco Pereira da Silva, O
Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª ed., Almedina,
Coimbra, 2009, pág. 205)
Opinião diferente parece sustentar
o constitucionalista e professor J.J. GOMES
CANOTILHO, apontando para uma tendencial coincidência entre estas acções:
«nas acções colectivas, qualquer cidadão, individualmente ou associado
(«associações de defesa»), mesmo não invocando o interesse público, pode
intentar uma acção em defesa de um interesse
do público em geral ou de categorias ou classes com grande número de
pessoas – interesses difusos –, (“saúde
pública”, “ambiente”, “qualidade de vida”, “património cultural”) e dos seus
próprios direitos subjectivos (direito ao ambiente, direito à qualidade de
vida, direito à saúde). Estes dois tipos de acções tendem hoje a confundir-se
porque a defesa de interesses difusos coincide com a defesa de interesses
públicos e a defesa de direitos individuais (daí a fórmula americana public interest action). (J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição,
7ª ed., Almedina, Coimbra, 2003, p. 511.)
3. O que são, afinal, interesses difusos? Para responder à
pergunta, comecemos pela clássica distinção entre as três categorias de
posições jurídicas activas: direitos
subjectivos, interesses legalmente protegidos e interesses difusos, sendo que, estes últimos, para certa doutrina,
são uma sub-categoria de interesses legalmente protegidos (ver, por exemplo: Paulo Otero, Manual de Direito Administrativo, vol I, Almedina, Coimbra, 2013,
pp. 240-241).
Quanto aos direitos subjectivos, podemos
defini-los como posições subjectivas de vantagem protegidas directa e
imediatamente pela constituição e pela lei ou como permissão de aproveitamento
de um bem. Os interesses legalmente protegidos podem ser definidos como todas
as posições jurídicas subjectivas de vantagem que não se reconduzem a direitos
subjectivos; o particular seria aqui protegido indirectamente.
Por fim, os interesses difusos
correspondem a valores e bens públicos insusceptíveis de apropriação individual,
como são, designadamente, os referidos no art. 52º, nº3 da Constituição; «subjectivação
não individualizada ou não individualizável de interesses públicos ou de
necessidades comuns da sociedade (…)», nas palavras de Paulo Otero (op. cit,
p. 241); «refracção em cada indivíduo de interesses unitários da comunidade,
global e complexivamente considerada» (J.J Gomes
Canotilho e Vital Moreira, Constituição
da República Portuguesa Anotada, 4ª edição revista, Almedina, Coimbra, 1º
Volume, p. 696.)
4. Uma brevíssima referência
deverá ser feita à controvérsia sobre a (in)distinção entre direitos
subjectivos, interesses legalmente protegidos e interesses difusos. Segundo a
posição assumida por VASCO PEREIRA DA
SILVA, entre as diferentes categorias de posições substantivas de
vantagem não existe, na verdade, uma diferença de natureza mas, quando muito, de conteúdo. Aderindo à
teoria da norma de protecção, largamente difundida na Alemanha, este professor
confessa:
«não me parece fazer sentido
continuar a distinguir entre “direitos subjectivos de primeira categoria” e “direitos
de segunda”, ou mesmo de “terceira ordem” (como, eventualmente, poderiam ser
considerados os denominados interesses difusos), antes todas as posições
substantivas de vantagem dos privados perante a administração devem ser
entendidas como direitos subjectivos.» (Vasco
Pereira da Silva, op. cit., p. 264)
Em clara oposição, surge PAULO OTERO, que assevera: «não se pode
aceitar como válida, à luz do ordenamento jurídico português vigente, a tese
que, negando a distinção entre direitos subjectivos e interesses legalmente
protegidos, fala em teoria da norma de protecção(…)» Paulo Otero, op. cit.,
pág. 231.
5. Julgo também que não é possível
compreendermos a figura da acção popular sem termos em conta os dois principais
modelos do contencioso administrativo: o modelo objectivista, tradicional, consagrado
em Portugal até à Constituição de 1976, e o modelo subjectivista, moderno, que
ao longo da história do contencioso administrativo veio, progressiva e
lentamente, substituindo aquele.
Em breves palavras, segundo a
concepção objectivista, no contencioso administrativo, a administração ocupa a
posição de «autoridade recorrida», que vai a juízo em auxílio do Tribunal; o
particular, por seu turno, é o «administrado» que pode no máximo aspirar à
defesa do interesse público e da legalidade, não à defesa dos seus direitos
perante as actuações da administração todo-poderosa. Esta, de resto, também não
é parte no processo, não se
distinguindo, na sua actuação, do tribunal. Na concepção objectivista, o
contencioso não é um «processo de partes»; particular e administração, longe de
serem dois pólos em oposição num dado litígio, são antes uma espécie de
colaboradores do tribunal na sua tarefa de cumprir, fazer cumprir a lei e
promover o interesse público.
A doutrina clássica,
objectivista, tem as suas raízes numa fase do contencioso administrativo,
nascida com a Revolução Francesa, em que se verifica uma confusão entre as
esferas do administrador e do juiz, embora ancorada na ideia de separação de
poderes, e, como tal, na separação entre o poder judicial e o poder político.
Esta ideia serviu, no entanto, para proibir o poder judicial de julgar a
administração: se há separação de poderes, então a administração será juiz dela
própria.
Contrariamente, a concepção
subjectivista irá reclamar um processo em que no centro surgem o particular e a
administração, num plano de igualdade, pelo menos formal, no qual o particular
é um sujeito de pleno direito e pleno de direitos, e em que tanto o cidadão
como a administração são verdadeiras partes.
Neste sentido, acompanhamos VASCO PEREIRA DA SILVA quando afirma que
é na acção do particular para a defesa de direitos pessoais que verdadeiramente
se concretiza o contencioso de natureza subjectivista. A legitimidade do
titular da relação material controvertida é, com efeito, uma das mais eloquentes
expressões do progresso da história do contencioso administrativo (que não
podemos aqui aflorar).
Resta saber se o contencioso
administrativo é hoje caracterizado pela orientação subjectivista, ou se, pelo
contrário, a relevância jurídica dada à legitimidade popular o tornou um
contencioso de natureza objectivista.
Para esta última ideia parece
inclinar-se PAULO OTERO, quando
refere que «a acção popular confere um cunho de natureza objectivista à função
do contencioso administrativo» (Paulo
Otero, A acção popular:
configuração e valor no actual direito português in Separata da Revista da
Ordem dos Advogados, ano 59, III – Lisboa, Dezembro 1999, p. 892.)
VASCO
PEREIRA DA SILVA, pelo contrário, recusa esta ideia, visto que tanto o
actor popular como o actor público (o Ministério Público) «actuam para a defesa
da legalidade e do interesse público, realizando de forma directa a função objectiva,
ainda que no quadro de um processo organizado estruturalmente em termos subjectivos»
(Vasco Pereira da Silva, op. cit.,
p. 271).
Saliente-se do excerto sobretudo
a sua parte final: o pano de fundo diante do qual se desenrola o processo
administrativo é, essencialmente, subjectivo, ainda que não se negue o relevo
da legitimidade popular.
6. Em jeito de conclusão, diríamos que a acção
popular, apesar de não tutelar imediatamente os direitos de um particular,
visa, no limite, proteger direitos subjectivos dos cidadãos. Enquanto direitos
fundamentais, a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de
vida, a preservação do ambiente e do património cultural não são meras
abstracções; correspondem a direitos das pessoas, concretizam-se em todos e em cada um, mesmo que não
seja possível isolar uma concreta lesão dos particulares. Evidentemente, não se
trata de considerar que os interesses da colectividade são apenas uma soma de
interesses dos particulares, mas antes de realçar que a acção popular, ao
tutelar bens e valores da comunidade consagrados da Constituição, não deixa por
isso de ter efeitos ao nível dos direitos dos particulares.
Não haverá, na verdade,
necessidade de encontrar o «actor principal» do contencioso administrativo, porque
quer o particular, quer o actor popular, com a sua actuação no processo,
concorrem, o primeiro, directa e imediatamente, e o segundo, indirecta e
mediatamente, para a mesma finalidade, a saber, a tutela de direitos
subjectivos dos particulares (na concepção ampla já referida).
Veja-se que a acção popular pode,
em certos casos, ser mesmo a única forma de tutelar esses direitos. Se os
particulares não forem directa e pessoalmente atingidos por actos, normas ou
omissões da administração, isto é, se não forem parte numa relação jurídica
administrativa, podem não ver os seus direitos políticos, sociais ou culturais reconhecidos
pela justiça.
Creio que a posição de Vasco Pereira da Silva sobre a
desejável aproximação entre direitos e interesses
nos abre importantes pistas de reflexão, e nos deixa um alerta, no sentido da
necessidade de concretização de uma ainda mais ampla garantia dos direitos dos
cidadãos; contudo, de iure constituto,
a posição pode eventualmente conter mais fragilidades, atento o facto de a
distinção se encontrar consagrada, desde logo, na Constituição (veja-se, a
título de exemplo, a norma fundamental do art. 20º, nº1, CRP), para além estar
disseminada por todo o ordenamento jurídico. Não obstante, parece-me que a
teoria da norma de protecção poderá ser um poderoso instrumento de
interpretação, no sentido de evitar tentações várias de «cavar o fosso» entre
direitos e interesses e de criar distinções e sub-distinções ultra-formalistas
que podem acabar por potenciar a incomunicabilidade entre estes conceitos –
onde, aliás, parece ser muito mais o que
os une que aquilo que os separa – e, acima de tudo, diminuir as garantias constitucionais dos cidadãos perante a administração.
Patrícia Ponte Bastos
Aluna nº 28473
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