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A REPRESENTAÇÃO DO ESTADO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO NO ÂMBITO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO



A Constituição da República Portuguesa (CRP) dispõe que compete ao Ministério Público (MP) representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar (artigo 219º/1). Compete-lhe a defesa da legalidade democrática e a promoção da realização do interesse público, exercendo para o efeito os poderes que a lei lhe confere (arts. 219º/1, CRP; 3º, 5º, Estatuto do Ministério Público (EMP); 51º, Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF)).
Diferentemente dos sujeitos auxiliares do processo (como peritos ou testemunhas), o MP pode desempenhar um conjunto de papéis nos tribunais administrativos, cujo quadro genérico resulta do art. 51º Código do Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), e por isso merece a nossa atenção.
O Ministério Público representa o Estado sempre que estejam em causa interesses patrimoniais, ou interesses não patrimoniais que se identificam com os interesses da comunidade e com o interesse público: saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, das Regiões Autónomas (RA) e das autarquias locais (art. 9º/2 CPTA). O Ministério Público caracteriza-se, segundo Sérvulo Correia, pela sua unidade orgânica, pela multiplicidade de funções e pela prossecução de diferentes interesses públicos.
Como parte principal, o MP propõe ações em defesa da legalidade, impugna decisões administrativas ou normas regulamentares emitidas por organismos da administração pública, ou representa o Estado em ações que tenham por objeto relações contratuais e de responsabilidade civil extracontratual. No caso de intervenção acessória, por sua vez, o MP emite pareceres e interpõe recursos jurisdicionais em defesa da legalidade (arts. 152º e 155º CPTA). Mesmo não sendo parte no processo, o MP, como órgão de justiça que é, pode intervir sempre que estejam em causa bens, interesses ou valores cuja defesa tem o particular poder-dever de assegurar. Como parte ativa, o MP tem legitimidade para, entre outros, propor e intervir em diversas ações, impugnar atos administrativos ou condenar à prática de atos devidos. Tem, por sua vez, legitimidade passiva quando seja proposta ação, providência ou qualquer procedimento contra pessoa ou entidade que por si deva ser representada ou patrocinada (artigos 11º, CPTA; 3º, 5º, EMP).
Os poderes do MP traduzem-se na representação de outros sujeitos processuais, na iniciativa processual em nome próprio – nomeadamente na ação popular e na ação pública –, e na intervenção em processo intentado por outro sujeito processual. Vejamos mais detalhadamente.
O MP tem poderes de representação de outros sujeitos processuais, nomeadamente o Estado, as RA, as Autarquias, os incapazes, os ausentes e os incertos (artigos 1º, 3º/1 a) e 5º/1, 2 e 3 EMP e 11º/1 CPTA), defendendo-os como partes no âmbito do processo administrativo. Este poder assegura a tutela jurisdicional de interesses públicos específicos e, “quando exercida, corresponde à intervenção principal”. É, em todos os tribunais, o representante orgânico e obrigatório do Estado, artigo 5º/1 a) EMP, sendo por isso “citado em sua representação nas ações em que o Estado seja parte”. Nestes casos, o MP atua a título de patrocínio (a intervenção é facultativa), e a sua intervenção cessa assim que for constituído mandatário próprio.
O MP tem poderes de iniciativa processual em nome próprio (legitimidade ativa), designadamente através da ação popular e da ação pública (arts. 9º/1 e 2 CPTA). A ação popular permite-lhe que, invocando a proteção de interesses constitucionalmente protegidos, possa interpor em processos principais e cautelares Esta atribuição de poderes fundamenta-se na função do MP de defesa da legalidade democrática, ao qual são dadas amplas faculdades para deduzir pedidos perante os tribunais administrativos (exemplo: impugnação de qualquer ato administrativo, vide artigo 55º/1 b) CPTA). Na ação de condenação, a sua legitimidade encontra-se condicionada pelos limites do artigo 68º/1 b) CPTA. Além destas faculdades, o MP também tem legitimidade para pedir a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral de norma imediatamente operativa (73º/1 CPTA). No domínio do contencioso regulamentar, é-lhe conferida legitimidade para requerer ao tribunal administrativo a apreciação e verificação da existência de situações de ilegalidade por omissão para dar azo à exequibilidade a atos legislativos carentes de regulamentação (77º CPTA).
Pode ainda intervir nos processos em que não seja parte. O CPTA confere ao MP a possibilidade de se pronunciar sobre o mérito da causa, quando estejam em causa interesses públicos relevantes (artigos 9º/2 e 85º/2 do CPTA) ainda que a ação tenha sido intentada por outro sujeito processual. Na versão anterior do CPTA, o poder do MP de intervir nos processos em que não fosse parte era concedido no âmbito da ação administrativa especial, no entanto este tipo de ação foi extinto com as alterações da “reforminha” (Vasco Pereira da Silva) de 2015.
No anterior sistema processual, o MP dispunha de um amplo poder de intervenção que ia desde a defesa da legalidade, mediante recurso contencioso de anulação, até à representação do Estado em juízo (art. 27º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos – LPTA). A atenção do MP centrava‐se essencialmente no patrocínio em sede de contencioso do Estado, na atividade processual de carácter instrutório e no parecer final (obrigatório) sobre a decisão e que precedia a sentença.
Com a reforma do contencioso administrativo o modelo de intervenção do MP foi alterado, mas continua a ser o titular da ação pública administrativa e a assumir a representação do Estado em juízo. A nível processual, a sua intervenção está agora limitada. Em função do disposto no art. 85º, do CPTA tem um momento processual próprio para intervir (preclusivo). Pode requerer a realização de diligências instrutórias, dar pareceres sobre o mérito da causa, mas apenas em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes, ou de valores ou bens constitucionalmente protegidos e mencionados no art. 9º/2 CPTA.
Poder-se-ia concluir, assim, que diminuíram as competências do MP – mas tal entendimento não é o mais correto. Embora a possibilidade de intervir no processo em termos instrutórios ou acessórios esteja mais limitada, o certo é que a representação do Estado aumentou.
O contencioso do Estado na jurisdição administrativa assume agora outra dimensão, na medida em que foi diferida para esta instância a resolução dos conflitos em matéria de responsabilidade contratual e pré-contratual, em termos alargados, especialmente porque lhe foram diferidos os conflitos em matéria de responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, quando no quadro processual anterior só lhe cabiam se o ato lesivo fosse tido como ato de gestão pública. Verifica-se então que muitas ações contra o Estado que antes cabiam à jurisdição cível, cabem ao foro administrativo. Ainda nesta área importa assinalar uma competência atribuída ao MP que tem passado despercebida – patrocínio dos institutos públicos. Tradicionalmente o MP só representava o Estado enquanto pessoa coletiva pública (a essa representação se refere o art. 3º/1 a) EMP). As entidades que integravam a administração indireta do estado assumiam uma individualização diferente do estado e dai que a respetiva representação em juízo competisse aos respetivos órgãos estatutários. A atual Lei-quadro dos Institutos Públicos (Lei 3/2004, de 15 de Janeiro) veio possibilitar, em moldes genéricos e sem limitações que tais entidades possam solicitar ao MP a sua representação em juízo.
Em suma, o poder de iniciativa e de intervenção do Ministério Público no Contencioso Administrativo tem vindo a diminuir desde o início do século, ainda que se mantenha um importante sujeito ativa na relação jurídico-administrativa. Atua como órgão defensor da legalidade democrática, agindo como representante do Estado, a título de patrocínio, em iniciativa processual em nome próprio e nos processos em que não seja parte. Concluindo, o Ministério Público atua como um importante e indispensável órgão de administração da justiça, realizando múltiplas funções e tendo sempre como fim último a garantia da legalidade democrática.

Bibliografia:
·       SÉRVULO CORREIA,“A reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério Público”;
·       MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “Manual de Processo Administrativo”;
·       ALEXANDRA LEITÃO, “Representação do Estado pelo Ministério Público nos Tribunais Administrativos”.

Maria Beatriz de Aguiar Fernandes (nº27999)

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