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Do Recurso Hierárquico Necessário: análise crítica da doutrina contra este instituto (no âmbito das ações de impugnação de atos administrativos)


O Decreto-Lei 4/2015 (lei que aprovou Código de Procedimento Administrativo de 2015) consagrou a obrigatoriedade dos recursos hierárquicos no seu art. 3º, nos casos em que a lei diga que a impugnação é “necessária”, em que “do ato em causa ‘[exista] sempre’ reclamação ou recurso” e em que “a utilização de impugnação administrativa ‘suspende’ ou ‘tem efeito suspensivo’ dos efeitos do ato impugnado.”
                O recurso pode ser necessário ou facultativo: caso a norma reguladora da situação material controvertida não utilize uma destas expressões, será facultativo. Em ambos os casos, o recurso despoleta a suspensão do prazo para a propositura de ações em tribunal (art. 59º/4 do CPTA). O prazo para a sua apresentação, no caso de ser necessário, é de 30 dias (193.º/2, primeira parte do CPA); se for facultativo, é de 3 meses (193.º/2, segunda parte e 58.º/1 al. b) do CPTA). Em regra, terá de ser decidido no prazo de 30 dias, ou, no máximo, de 90 dias, se for caso de haver instrução ou diligências complementares (198º/1 e 2 do CPA).
                Dessa forma, a regra é a de que o recurso hierárquico será facultativo (art. 185º/2 do CPA).

                Interessa-nos, no entanto, apenas os casos em que o recurso é necessário, devido à controvérsia doutrinária que deles se originou. Se o recurso é obrigatório, pode dizer-se que constitui um pressuposto para o acesso à tutela jurisdicional, pela imposição da sua apresentação anteriormente à propositura de ação. Como tal, cabe saber se é um limite do direito ao acesso aos tribunais, quando há lesão de um direito do particular por parte da Administração Pública (constitucionalmente protegido – art. 268º, nº 4 da CRP):

VASCO PEREIRA DA SILVA entende não só que sim, como diz que estamos perante uma “verdadeira negação do direito fundamental”; acrescentando que, se o ato lesar, tem de ser impugnável, e que, como tal, a exigência de impugnação prévia é inconstitucional. Assim, o Professor acredita que a impugnação prévia não constitui um pressuposto processual, mas está intimamente relacionado com um deles: a legitimidade.
A este argumento, junta outro, que apela à aplicação da lei no tempo: contra o disposto no art. 3º do Decreto-Lei 6/2015 (e 185º do CPA), aplica os arts. 51º/1 e 55º/1 do CPTA. Segundo estas normas, há dois critérios que determinam a impugnabilidade dos atos pelos particulares: a sua eficácia externa e a lesão de direitos ou interesses legalmente protegidos. A revisão do CPTA foi publicada dia 2 de outubro de 2015 e entrou em vigor 60 dias mais tarde (art. 15º/1 do Decreto-Lei 214-G/2015), enquanto que o novo CPA foi publicado dia 7 de janeiro de 2015 e entrou em vigor 90 dias depois (art. 9º do Decreto-Lei 4/2015). Assim, percebe-se a argumentação: o CPTA revogou a obrigatoriedade dos recursos (impondo apenas esses dois critérios e não o exigindo) que havia entrado em vigor no início do ano.
Estes dois fundamentos, que julgo serem os essenciais, são acrescidos de mais 3:
- redução do prazo de impugnação judicial: se o particular não recorre dentro do prazo (de 30 dias – art. 193º/2 do CPA), não pode levar a sua pretensão a tribunal. Reduz-se, assim, o prazo de 3 meses estabelecido pelo CPTA, o que em si se afigura como uma inconstitucionalidade violadora da tutela plena dos direitos fundamentais;
- o apelo ao princípio da separação de poderes: preclude-se o acesso aos tribunais pela não-utilização de uma garantia administrativa;
- a inutilidade do recurso hierárquico: o Professor diz que o recurso não é útil pois os superiores acabam por decidir da mesma maneira que os subalternos.

Começo por concordar com a opinião do Professor no que toca aos prazos. A limitação do acesso à tutela jurisdicional, passado um mês, parece-me claramente violadora do art. 268º/4 da CRP. Isto é, se o particular não apresentar recurso nesse prazo, já não terá acesso aos tribunais (por falta de preenchimento desse pressuposto processual). O mesmo não posso dizer em relação aos restantes argumentos.
De facto, a necessidade do recurso é um limite ao acesso aos tribunais (nunca uma “verdadeira negação”), mas é uma limitação minúscula. Estamos perante o confronto entre dois princípios: o da tutela dos direitos fundamentais e o da economia processual. Em 2017, um processo demorava, em média, 710 dias a ser resolvido (quase 2 anos!). A lógica aqui seria a mesma que impõe o pressuposto (doutrinário) do interesse em agir: pretende-se evitar ações inúteis, cujas soluções possam incidir sobre meios extra-judiciais (no processo civil, o exemplo clássico é o da ação de cumprimento de uma obrigação, não tendo o autor ainda interpelado o réu para que este cumpra; em sede de contencioso, faço um paralelo com a ação de impugnação de um ato administrativo que não foi ainda objeto de recurso hierárquico, nos casos em que este é obrigatório).
Quanto à suposta revogação deste instituto pela lei posterior (o CPTA), não acredito que suceda. Para começar, é sabido que tanto o CPA como o CPTA foram elaborados pela mesma comissão. Logo, se procedermos a uma interpretação teleológica do regime, concluímos que a intenção do legislador era a da cumulação de requisitos: caso contrário, o art. 51º/1 conteria uma revogação expressa dos recursos necessários. Não sendo o caso, nada obsta a que se apliquem os artigos 51º/1, 55º/1 do CPTA e 3º do Decreto-Lei 4/2015 em simultâneo.
Por sua vez, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA defende que os arts. 51º e 59º/4 e 5 consagram que a “impugnação administrativa não é necessária para aceder à via contenciosa”. Discordo desta afirmação: parece resultar, aliás, do art. 59º/5, que a “impugnação administrativa” precede a contenciosa, o que vai no sentido da cumulação legal dos pressupostos.
Por fim, segundo a lógica administrativa da hierarquia, face a um recurso, teremos uma pessoa diferente a analisar a pretensão do particular. Em termos de origem e funcionamento do instituto, o recurso confere uma proteção maior ao particular por lhe dar mais uma via de solução para o seu problema. Se a pronuncia do superior acaba sempre por afirmar a do subalterno, estamos perante um problema de Direito Administrativo e de mau funcionamento da Administração Pública, e não de Contencioso.

Conclui-se, assim, que a lei em nada impede que o recurso hierárquico seja obrigatório. Diria mesmo que é esse o regime que resulta das revisões de 2015. Mesmo no que toca aos princípios, acredito, neste caso, haver uma sobreposição do princípio da economia processual ao da tutela dos atos administrativos lesivos, dado que a limitação deste último direito é mínima.
Acredito que o recurso hierárquico, nos casos em que é necessário, constitui um pressuposto processual, visto garantir o interesse em agir do autor. Não considero que os argumentos dados quer por MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, quer por VASCO PEREIRA DA SILVA sejam procedentes. Concordo apenas que o prazo para o recurso é demasiado curto, o que constitui uma violação do art. 268º/4 da CRP.


Tiago Guerreiro
aluno nº 27937


Fontes:


VASCO PEREIRA DA SILVA, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2ª Edição, Almedina, 2013, p. 349 e ss.


Jurisprudência que tem em conta o interesse em agir como pressuposto processual (exemplos): http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/12e5fc011c58c62180257df10043bfd8?OpenDocument

MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “Manual de Processo Administrativo”, 2ª Edição, Almedina, 2016, p. 290 e ss.


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