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CONDENAÇÃO À PRÁTICA DE ACTO DEVIDO
Âmbito de Aplicação e Pressupostos Processuais

Já muito foi dito sobre a condenação à prática de acto devido, nomeadamente nas implicações que trouxe ao Contencioso Administrativo.
O primeiro impacto (e talvez o mais visível) foi a passagem de um Contencioso de mera anulação para um Contencioso de plena jurisdição, não com o único objectivo da tutela da legalidade, mas sobretudo preocupado com a tutela dos direitos dos particulares.
A revisão constitucional de 1997 (no seguimento do que já vinha da revisão de 1982 e da subsequente reforma do Contencioso de 1984-1085) consagrou expressamente no artigo 268º/4 a “tutela jurisdicional efectiva” consagrado também meios processuais com vista a essa tutela, designadamente “a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos”. Significa isto a consagração expressa que os tribunais podem dar ordens à Administração, caso esta não esteja a seguir rigorosamente a sua função: respeito pelo princípio da legalidade e prossecução do interesse público.
Claro que a condenação à prática de acto devido tem uma força totalmente diferente quando vemos a administração moderna, do Estado Social, em que não é só uma administração “agressiva”, “intrusiva” na esfera jurídica dos particulares, mas sobretudo uma administração prestadora. Uma administração que não se limita a “tirar”, mas sobretudo a “dar”.
O principal problema que se pode colocar nesta ação administrativa é o respeito pelo princípio da separação de poderes. Tendo em atenção, que falamos de duas funções distintas (administrar e julgar), é necessária especial cautela com as ordens dadas pelo tribunal à Administração, correndo este o risco de se imiscuir nos poderes da Administração.
Estamos perante um equilíbrio ténue entre a tutela jurisdicional efectiva e a separação de poderes. Uma das manifestações é visível, por exemplo, nos poderes de pronúncia do tribunal (art.71º do CPTA).
No nr.1 o tribunal não se limita a devolver a questão ao órgão anulando ou declarando nulo, mas há uma pronúncia do tribunal sobre a pretensão material do interessado, impondo a prática do acto. Todavia, caso o tribunal não possa decidir por si por estarmos perante uma situação de discricionariedade administrativa (relevando juízos de conveniência e oportunidade) e esta não esteja te tal forma reduzida que apenas seja possível indicar uma solução como possível (a chamada “redução da discricionariedade administrativa a zero”) o tribunal não pode deixar de “explicitar as vinculações a observar pela Administração na emissão do acto devido” (71º/2 CPTA).
Importa referir que estas vinculações não podem ser demasiado vagas, correndo o risco de não serem verdadeiras vinculações, deixando ainda uma larga margem de discricionariedade (violando o princípio da tutela jurisdicional efectiva), mas também não podem ser de tal forma densificadas que reduzam a discricionariedade a uma escolha, violando, por isso, o princípio da separação de poderes.
Podemos constatar da análise do artigo 71º que o legislador teve uma forte preocupação em conceder poderes de pronúncia ao Tribunal que conferem a possibilidade verdadeira e efectiva de fazer valer os direitos dos particulares, mas teve em atenção a eventualidade de intromissão na esfera decisória da Administração por parte do poder judicial.
Neste texto não importa tanto fazer uma análise mais aprofundada das implicações que trouxe na mudança de paradigma do Contencioso, nem do ponto de vista da separação de poderes vs tutela jurisdicional efectiva, questões essas, diga-se, relativamente sedimentadas.
Assim sendo, creio ser mais oportuno debruçar-me sobre questões práticas do actual regime, nomeadamente no que se refere aos pressupostos da condenação à prática de acto devido.
Os pressupostos processuais (específicos) vêm previstos no art.67º do CPTA.
O primeiro pressuposto é o da apresentação do “requerimento que constitua o órgão competente no dever de decidir” (67º/1). A apresentação deste requerimento é fundamental pelo simples facto de que é necessário que a Administração tenha tido a oportunidade de se debruçar sobre a questão e, como tal, tenha tido o dever de decidir, seja em sentido favorável ou desfavorável, mas tenha tido essa oportunidade. Caso assim não fosse, poderia acontecer o recurso aos meios jurisdicionais desnecessariamente, visto que a Administração poderia simplesmente, caso a pretensão lhe tivesse sido colocada, ter satisfeito na totalidade essa pretensão. Argumentação idêntica é também susceptível de ser utilizada para justificar a regra do 67º/1-a) - existindo um prazo legal para a Administração decidir, este deve ser respeitado. A não apresentação deste requerimento implica a falta do pressuposto processual do interesse.
Todavia, não é totalmente imperativo que tenha havido esse prévio requerimento. Exemplo disso é expressamente o 68º/1-b) – o Ministério Público como “paladino” da defesa da legalidade e também (neste caso “principalmente” diria) dos direitos fundamentais dos particulares, não há necessidade de apresentação do requerimento, desde que o dever de praticar o acto resulte directamente da lei, ou seja, permite reagir-lhe contra situações de inércia no cumprimento da lei.
Outra situação em que não há a necessidade de apresentação de prévio requerimento é a situação prevista no art. 67º/4, isto é, imposições que resultem directamente da lei (67º/4-a), o que faz bastante sentido, visto que a Administração já deveria ter praticado um acto independentemente de qualquer conduta do particular e ainda não o fez, e caso se pretenda a substituição de um acto de conteúdo positivo (67º/4-b).
Em relação ao 67º/1-b) parece ser a regra paradigmática que legítima o recurso a esta acção administrativa, o indeferimento da pretensão ou a recusa de apreciação do requerimento. Isto significa que o particular vê negada a prática de um acto a que acredita ter direito, sendo rejeitado pela Administração. Como tal, recorre a tribunal para ver a sua pretensão satisfeita, mediante a prática de um acto administrativo por imposição do tribunal (ou pelo menos com vinculações quanto à sua emissão).
Interessante reparar que, fazendo uma leitura sistemática do CPTA, o próprio legislador indica este como o pedido adequado contra um acto de indeferimento ou de recusa de apreciação de requerimento (51º/4 quanto aos atos impugnáveis).
O legislador consagra também a possibilidade de, quanto a um acto de conteúdo positivo, mas que não seja integralmente satisfatório da pretensão do interessado, seja também sujeito a esta acção (67º/1-c). Esta possibilidade faz todo o sentido, tendo em conta que, se o particular acredita ter direito a 100 e é-lhe reconhecido apenas 50, não faz sentido este ficar privado de uma parte da sua pretensão.
Importa ressalvar que há a faculdade do particular de proceder em alternativa à impugnação dos actos em causa (66º/3). Esta é uma lógica de pedidos alternativos e não de meios processuais alternativos.
Por fim, uma breve referência aos prazos (art.69º).
No caso de inércia da Administração o prazo para a impugnação é de um ano (69º/1) e no caso de actuação (seja de indeferimento, de recusa de apreciação do requerimento ou de pretensão dirigida à substituição de um acto de conteúdo positivo o prazo é de 3 meses (69º/2).
A situação mais “delicada” na contagem do prazo é a da situação de condenação à prática de acto devido em contencioso pré-contratual em que se considera que o prazo é de apenas um mês (101º), não sendo aplicado o prazo geral.
Após esta análise do regime da condenação à prática de acto devido é possível tirar x conclusões que resumem/caracterizam esta ação:
1-      Estamos perante uma demonstração clara do subjectivismo no moderno Contencioso Administrativo em que não se tutela em primeira linha a legalidade, mas antes direitos dos particulares

2-      É uma acção que está em linha com o princípio da tutela jurisdicional efectiva, pedra angular de qualquer Estado de direito democrático

3-      Ainda que seja de enorme relevância, a sua aplicação prática continua a suscitar problemas, nomeadamente no receio dos tribunais em não interferir na esfera discricionariedade da Administração, limitando-se a exprimir vinculações vagas  


Bibliografia consultada:
-ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 3ª Edição (2017), Coimbra, Almedina, pág. 89-107
-ANDRADE, Vieira de, A Justiça Administrativa – lições, 11ª edição (2011), Coimbra, Almedina, pág. 199-209
-MEALHA, Esperança, “Condenação à Prática de Acto Devido” in Revista do Ministério Público, Ano 30, nr.117, (Janeiro-Março 2009), Lisboa, págs. 182-198
- SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª edição (2009), Coimbra, Almedina, págs. 377-411


João Dias
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