A natureza dos contra-interessados no Contencioso Administrativo
Introdução:
Atualmente, no Direito Administrativo moderno, a atuação da Administração Pública é suscetível de afetar uma multipolaridade de interesses, contrariamente ao que sucedia antigamente, em que as decisões administrativas eram feitas em moldes puramente bilaterais, em que de um lado se encontrava a Administração Pública e do outro, os interesses privados. E a figura dos contra-interessados veio demonstrar essa nova faceta do Contencioso Administrativo, apresentando-se como um traço distintivo em relação ao Processo Civil, onde os litígios se moldam bilateralmente. (1)
Esta figura visa os casos em que as atuações administrativas produzem efeitos sobre sujeitos que não são os seus imediatos destinatários, mais concretamente, os casos em que pessoas, que não o autor e o demandado, são prejudicados diretamente pela ação em causa ou têm interesse na manutenção da situação contra a qual o autor quer agir. Está presente nos artigos 57º, em relação às ações impugnatórias, e 68º/2 CPTA, no que toca às ações de condenação à prática de ato devido.(2) Enfim, são todos aqueles que têm um interesse direto e pessoal em que não se dê provimento à ação, mas aos quais não se exige a titularidade de uma posição substantiva própria.(3) A figura dos contra-interessados é perceptível num exemplo de escola: numa ação de impugnação de uma licença de construção, ao interesse da pessoa que interpõe a ação contrapõe-se sempre o interesse daquela que iria ter o direito a constituir. E o mesmo acontece numa ação de demolição de um imóvel.(4)
O princípio que está na base da exigência do 57º e do 68º/2, é o princípio da tutela efectiva, cuja base legal são os artigos 20º e 268º/4 da CRP. E dentro deste, especificamente, os subprincípios do acesso aos tribunais, das competências de conformação processual, e o princípio da utilidade e eficácia da pronúncia jurisdicional.(5) Alguma doutrina, argumenta ainda com a efetividade do princípio do contraditório, que pressupõe não serem proferidas pelo tribunal quaisquer decisões desfavoráveis a um sujeito processual, sem que este seja ouvido sobre a matéria, em termos de lhe ser dada a oportunidade de a discutir.
Partes, terceiros, ou auxiliares?
Relativamente à sua natureza, foi várias vezes discutido se estes deveriam ter o estatuto de parte ou de terceiro, no entanto, atualmente parece-me consensual que não podem deixar de ser considerados partes. O artigo 10º/1, parte final: “as pessoas ou entidades titulares de interesses contrapostos aos do autor” refere-se aos contra-interessados como verdadeiras partes. O CPTA separa, aliás de forma nítida a participação dos contra-interessados como parte principal (10º/1) da intervenção de terceiros (10º/10). Uma coisa são contra-interessados, outra bem diferente serão os restantes terceiros. Adicionalmente, evidente também é que o conta-interessado não consubstancia nenhuma espécie de auxiliar ou substituto processual da Administração, desde logo porque a entidade demandada não abandona o processo por efeito de existirem contra-interessados, nem a participação destes dispensa a participação da autoridade recorrida.
O professor José Carlos Vieira de Andrade refere que eles não podem deixar de ser reconhecidos como partes devido às várias exigências que são feitas ao longo do CPTA, a obrigatoriedade de indicação e citação de eventuais contra-interessados (78º/2/b e 81º), e também pelo facto de a lei lhes conferir todos os poderes processuais próprios das partes, designadamente o de contestar (82º), de recorrer (155º), considerando-se incluídos nas referência às partes nos artigos 95º, 120º/3, 121º, o que mais uma vez vai ao encontro de serem verdadeiras partes (princípio igualdade das partes - 20º/4 CRP e 6º CPTA). (6) O professor Vasco Pereira da Silva defende, que com a introdução das relações administrativas multilaterais no Direito Administrativo, os contra-interessados são “impropriamente chamados de terceiros”(7) e devem ser considerados sujeitos principais. Além disso, o senhor professor considera que deveria existir uma “regulação mais detalhada da sua participação”(8) dada a sua centralidade. Por sua vez, o professor Mário Aroso de Almeida considera que os contra-interessados devem ser vistos de uma forma mais ampla que a presente nos artigos 57º e 68º CPTA, de modo que o processo “não corra à revelia das pessoas em cuja esfera jurídica ele se propõe introduzir efeitos”. E isto não é o mesmo que dizer que os contra-interessados apresentam um interesse contraposto ao do autor da ação, pois isso nem sempre sucede, basta pensarmos no exemplo de uma ação de impugnação de um resultado de um concurso público.(9) Por fim, na mesma linha, o professor Paulo Otero, considera que estes não são “terceiros na verdadeira acepção do termo”, estes estão antes dentro de uma relação jurídica multipolar. Este ainda refere que a intervenção destes, a não se considerar um litisconsórcio necessário legal, seria necessário natural, do ponto de vista da “paz jurídica” e unidade da própria sentença.(10)
Legitimidade processual nas ações de impugnação (57º):
A sua identificação nem sempre é fácil, tendo em conta que as decisões administrativas podem afetar uma multiplicidade de pessoas para além dos seus diretos e imediatos destinatários, não sendo todos passíveis de serem identificados. A lei apenas torna obrigatória a demanda dos contra-interessados que se saiba existirem pelo conhecimento que o autor tenha ou devesse ter da relação material ou através dos documentos contidos no processo administrativo (78º/2/b e 80º/1/b).
Têm sido usados três critérios para identificar os contra-interessados, dada a dificuldade na sua identificação:
- critério do ato impugnado: serão contra-interessados aqueles que têm um interesse/vantagem na manutenção do ato que está a ser impugnado. Este tem sido alvo de bastantes críticas, que não cabe agora desenvolver.
- critério da posição substantiva do 3º: o contra-interessado tem de ter um interesse pessoal, direto e atual, tal como o autor da ação (59º/1/a), mas contraposto ao deste.
- critério dos efeitos da sentença: neste critério é feito um juízo de prognose para saber quais as esferas jurídicas que vão ser diretamente afetadas pela decisão do tribunal.
De entre estes três critérios, parece-me o terceiro o mais adequado, pois tal como diz Francisco Paes Marques: “a lesão na esfera jurídica de terceiros apenas ocorre, de forma efetiva, depois da decisão final do processo”, então deve ser citado o 3º que previsivelmente irá ser afetado pela decisão jurisdicional.(11) Relativamente ao critério adotado pelo CPTA, este trata-se de um critério misto, que combina as três orientações que referi.
Consequências da não intervenção destes no processo:
Chegados à conclusão de que são realmente partes, a doutrina é unânime ao considerar que os contra-interessados atuam em litisconsórcio necessário passivo com a entidade autora do acto impugnado. Litisconsórcio passivo pois os pedidos são formulados contra todas as partes, havendo unicidade do pedido. Necessário pois a sua preterição constitui excepção dilatória que obsta ao conhecimento do mérito da causa (89º/4/e). No entanto, esta execro dilatória não pode deixar de ser suprível à luz do artigo 87º/1/a, devido à dificuldade de identificação destes muitas vezes.Verifica-se também, a inoponibilidade da decisão judicial que porventura venha a ser proferida à revelia dos contra-interessados (155º/2). O meio que a lei faculta a estes para se oporem a uma sentença proferida em processo para o qual não foram chamados, é o recurso de revisão presente no 155º/2.(12) Caso os contra-interessados sejam citados e não intervirem no processo, as consequências advindas da decisão final serão-lhes totalmente oponível na mesma.
Jurisprudência:
O acórdão 05527/09 do 2º Juízo do Tribunal Central Administrativo Sul, de 04.03.2010, tratou da questão da determinação dos particulares com qualidade de contra-interessados. Neste caso, face a uma declaração de nulidade da licença de construção referente a um empreendimento, colocava-se a questão de saber se os recorrentes podiam ser constituídos partes enquanto contra-interessados. Decidiu o tribunal, da seguinte forma:
“I- Os Recorrentes devem ser admitidos como contra-interessados, face à previsão do art. 57º do CPTA, já que a declaração de nulidade da licença de construção referente ao empreendimento, seja do primitivo licenciamento (suspenso na sua eficácia por decisão judicial transitada em julgado), seja do titulado pelo alvará 251/2008 (julgado nulo por ofensa do caso julgado, pelo despacho de 25.08.09), pode directamente prejudicá-los;
II - De facto, estes que actualmente residem no empreendimento, podem ver os seus direitos de propriedade e de habitação (cfr. arts. 62º e 68º da CRP) irreversivelmente afectados com a procedência da presente acção de impugnação;
III - Assim, o despacho recorrido que rejeitou a constituição como contra-interessados dos Recorrentes, enferma do erro de julgamento que estes lhe imputam, violando o princípio da tutela judicial efectiva prevista nos arts. 20º e 268º da CRP e o disposto nos arts. 57º e 10º, nº 8 do CPTA.”
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(1) OTERO, Paulo, Os contra-interessados em contencioso administrativo: fundamento função e determinação do universo em recurso contencioso de ato final de procedimento concursal, in AAVV, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Rogério Soares, Coimbra editora 2001
(2) PINTO, Ricardo de Gouvêa, As consequências da Não Intervenção Devida dos Contra-interessados na Acção Administrativa Especial, in Estudos dedicados ao Professor Doutor Nuno Espinosa Gomes da Silva, Vol. II, Universidade Católica Editoria, 2013
(3) idem
(4) MARQUES, Francisco Paes, A Efectividade da Tutela de Terceiros no Contencioso Administrativo, Almedina, Novembro, 2007
(5) ANDRADE, José Carlos de Vieira, A Justiça Administrativa, 14ª edição, Almedina, 2015, págs. 240 e ss.
(6) SILVA, Vasco Pereira, O Contencioso Administrativo no divã da Psicanálise, 2ª edição, Almedina, Março 2009, pág. 372 e 373
(7) idem
(8) ALMEIDA, Mario Aroso, Manual de Processo Administrativo, 2ª edição, Almedina, 2006
(9) OTERO, Paulo, Os contra-interessados em contencioso administrativo: fundamento função e determinação do universo em recurso contencioso de ato final de procedimento concursal, in AAVV, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Rogério Soares, Coimbra editora 2001
(10) MARQUES, Francisco Paes, A Efectividade da Tutela de Terceiros no Contencioso Administrativo, Almedina, Novembro, 2007
(11) PINTO, Ricardo de Gouvêa, As consequências da Não Intervenção Devida dos Contra-interessados na Acção Administrativa Especial, in Estudos dedicados ao Professor Doutor Nuno Espinosa Gomes da Silva, Vol. II, Universidade Católica Editoria, 2013
(12) PINTO, Ricardo de Gouvêa, As consequências da Não Intervenção Devida dos Contra-interessados na Acção Administrativa Especial, in Estudos dedicados ao Professor Doutor Nuno Espinosa Gomes da Silva, Vol. II, Universidade Católica Editoria, 2013
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